Baque

A sonoridade do Maracatu Leão Coroado nos leva a uma viagem que liga passado e presente, lançando-nos para um futuro. Isso nos faz perceber que nem todos os elementos do baque do Leão foram irrestritamente construídos pelos antepassados da agremiação. Os participantes contemporâneos agregam a sua visão de mundo e a vitalidade criativa de uma maneira que atualiza o baque. Mas a viagem ancestral à qual o Leão Coroado nos conduz através do seu baque está justamente na síntese simbiótica que o maracatu propõe: remeter a um passado para construir no presente e ir além.

Baque 01Créditos: Katarina Real, na frente seu “Veludinho” no marcante com 100 anos de idade, e Walter na caixa, ao fundo o “Leão” símbolo do Maracatu Nação Leão Coroado, Córrego do Cotó, Água Fria, Recife PE, ano 1963. Álbum 4/66, 6/14, acervo FUNDAJ.

O maracatu é festa, alegria, força e muito trabalho; é resistência, tolerância, solidariedade, produz sentidos para a existência dos seus envolvidos. No âmbito religioso, o maracatu rende homenagem ao egum (espírito) dos ancestrais da comunidade e de outras pessoas consideradas importantes para o maracatu. Por isso mesmo, no seu comando está Iansã, que, além de dirigir o vento, as tempestades e a sensualidade feminina, domina os raios e exerce a soberania sobre os espíritos dos mortos, os quais ela sabiamente encaminha para o outro mundo. No que concerne ao comando do Carnaval e da tradição do maracatu, a qualidade dessa orixá guerreira é denominada Iansã de Balé, como a ela se referia Luiz de França — o mestre antecessor — e como reafirma o atual mestre Afonso Aguiar Filho. Balé vem do termo iorubano igbalé (pequena mata, lugar sagrado) e, como assinala Afonso Aguiar, é o recinto do terreiro “[…] onde são oficializadas as cerimônias religiosas (sacrifícios, cânticos, louvores) para os ancestrais”. Eis porque as calungas — bonecas conduzidas pelas damas do paço (palácio) e que dramatizam os eguns — autoridades máximas do maracatu. “A gente só sai com o recado delas, que é a autorização”, resume o mestre Afonso.

A função do baque é sonorizar o que o maracatu ritualiza: a energia das senhoras e dos senhores da natureza (sobretudo de Iansã) e a energia vital dos integrantes que “botam o maracatu na rua”. O baque e o cortejo como um todo formam um cluster de signos que vicejam entre dois extremos: numa ponta, a imponência do trovão expressa no som dos tambores; na outra, as sutilezas da feminilidade e do amor expressas nos movimentos das damas do paço. O baque não poderia ser menos imponente.

baque 02Créditos: No ganzá a direita Zé, no agogô Marcio, na caixa Marcelo, meninos nas alfaias são à direita Erike, à esquerda Henrique. Foto de Juliana Aguiar, álbum 09. Batuqueiros na Noite dos Tambores Silenciosos em Recife PE ano 2001, acervo do Leão Coroado.

Em vários maracatus nação, uma significativa parte dos saberes é ritualizada sob os auspícios de babalorixás, de ialorixás (pais e mães de santo) e/ou de iniciados que “zelam” pelas suas tradições culturais. O corajoso mestre Luiz de França foi um “zelador” que, com a sua habilidosa liderança, agregou reconhecimento ao Leão Coroado no âmbito da comunidade dos maracatus de Pernambuco e constituiu um sucessor, o mestre Afonso Aguiar Filho — segundo o pesquisador José Fernando Souza e Silva, o encontro deles foi mediado pelo prestigiado babalorixá Manoel Papai.

Mestre Afonso vem construindo uma nova trajetória de zelador, cuidando para que o Maracatu se mantenha firme, dando relevo aos seus traços definidores, mantendo e atualizando as convenções, agilizando oralmente a transmissão dos conhecimentos, enfim, empreendendo a continuidade vigorosa do Leão Coroado.