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Aprendendo com o Leão Coroado

Climério de Oliveira

Diante da Fundação que o Maracatu Leão Coroado reverbera em sua performance, senti-me honrado pelo convite do Mestre Afonso para que eu realizasse a direção musical do Projeto de Salvaguarda e para produção musical deste álbum. Senti-me igualmente acolhido por Diego e Lia (ICEI), os dirigentes do Projeto. No entanto, quando percebi que as damas do paço do maracatu de fato sustentam a sua Calunga, restou reconhecer humildemente que o máximo que um aprendiz como eu poderia fazer era assumir a função de mediador, posto que os integrantes do Leão Coroado já fazem com proficiência a direção e a produção da sua sonoridade. A minha participação se deu mediando as relações entre o Leão Coroado e os outros profissionais envolvidos no processo fonográfico, sobretudo, com os técnicos e empresários ligados ao estúdio de gravação. Na realidade o trabalho remeteu à mediação entre dois contextos distintos: o contexto da performance do maracatu e o ambiente tecnológico do estúdio, ambos com os seus respectivos agentes sociais, pessoas com diferentes formações, concepções, linguagens e sentimentos. Procurei unir-me ao coro do maracatu, saudando o rei e a rainha, mirando coletivamente no horizonte onde aponta o navio dos desejos dessa comunidade; assim, atuei no sentido de compreender a sonoridade que ambienta o passeio de Dona Isabé.

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Créditos: fotografía de Guga Soares, mercado da Ribeira, Olinda, PE, ano 2013.

Um dos desejos apontados pelos integrantes do maracatu foi a realização de um disco “parecido com o nosso baque, com o som que a gente escuta quando a gente está tocando”. Eles expressaram o anseio por “não fazer um disco com som de rua, como uma gravação de pesquisador”. O grupo já realizara um álbum assim caracterizado e, embora tenham orgulho deste primeiro CD, eles destacaram que gostariam de ouvir melhor as nuances e, sobretudo, “a conversa dos tambores durante a virada do baque”. Ao lado dessa vontade, eles manifestaram a necessidade de vivenciar uma gravação em um estúdio. Então, inicialmente, eu me encontrava diante de uma demanda: gravar um álbum do Maracatu Leão Coroado dentro de uma sala de estúdio de gravação.

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Acontece que eu não conseguia imaginar satisfatoriamente um maracatu confinado numa sala de estúdio. Durantes os treinos e apresentações, comecei a dialogar com as lideranças, com os batuqueiros e com os coordenadores do projeto acerca de gravações dentro ou fora do estúdio. Paralelamente, com o fito de elencar possibilidades, eu conversava com os técnicos de áudio do Recife e de outras capitais brasileiras. O Leão compartilhou a minha preocupação e a proposta de gravar em local aberto e eu me comprometi a fazer da gravação um workshop, partilhando com uma parte dos integrantes alguns conhecimentos técnicos acerca de equipamentos e processos de gravação. Entretanto, os técnicos com quem conversei foram praticamente unânimes em aconselhar a gravação dentro do estúdio e em overdubbing, pois assim, segundo eles, nós teríamos uma “redução das variáveis e um total controle sobre o som depois de captado”. Mas nenhum profissional de gravação consultado sabia responder à seguinte pergunta: “Como poderíamos captar dentro de uma sala de estúdio a ambiência da performance ao vivo do maracatu na rua?” Não havia resposta satisfatória, mesmo porque essa é uma conta que não fecha. Ao dar uma lapada com a baqueta na pele da alfaia, os batuqueiros açoitam uma significativa quantidade de ar e espalham o som ao seu redor, produzindo uma massa sonora que caracteriza a sua performance. Para atingir esse efeito, o espaço aberto é imprescindível, do contrário, o ímpeto sonoro do maracatu não se propaga. Além disso, o espaço fechado certamente inibiria o aspecto gestual dos batuqueiros, um forte componente cultural que tem implicações no som musical.

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Créditos: fotografia de Andrezza Lôbo, Festival do Caribe em Cuba, ano 2008. Acervo Leão Coroado.

O competente técnico de som Cris Lengruber fez de tudo para convencer-me a gravar dentro da sala: “Eu te garanto que, depois de gravarmos, nós poderemos adicionar ou subtrair vários efeitos e poderemos fazer o som desejável” – ele assegurou. Acontece que era justamente essa alternativa que eu queria mitigar, deixando para o Leão o que é atribuição do Leão: a sonoridade do seu baque, a sua energia musical. Portanto, eu me senti compelido a teimar com os técnicos de áudio e a assumir os riscos de gravar em local aberto. Chuva, sol, mudança de clima durante o dia, tudo isso podia atrapalhar. Todavia, o importante era captar o som do Leão Coroado tocando ao vivo e, depois de gravado, não tirar nem colocar nada. É claro que isso é impossível, pois a ideia de “naturalidade” em produção fonográfica é apenas um conceito, ou melhor, é uma ilusão. Mas, neste caso, é importante captar o som de uma maneira que seja praticamente desnecessário modificá-lo depois da captação.

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Créditos: fotografa Andrezza Lôbo, abertura carnaval no Recife ano 2005. Acervo Leão Coroado.

Já que o Fábrica Estúdios tem uma grande área aberta ao seu redor, eu resolvi propor a todos os envolvidos uma gravação ao ar livre, utilizando todos os equipamentos instalados no estúdio e trazendo apenas os cabos e os microfones para o lado de fora. Planejei uma microfonação para cada instrumento (closed caption) e um conjunto de microfones que captassem a sonoridade geral (over heads), de modo que pudéssemos aproveitar tanto a “pancada” de cada batuqueiro em sua alfaia e a ambiência geral do som ao ar livre. O Mestre Afonso (voz solo) e as pessoas que ele selecionou para a resposta (coro) já estavam habituados ao uso de microfones durante os ensaios e em apresentações do maracatu, o que facilitou o trabalho. Enfim, iniciamos a gravação, utilizando as primeiras horas para fazermos os testes e avaliarmos os resultados prévios com os batuqueiros e demais envolvidos, dentro e fora da sala de controle técnico. De então, tocamos em frente e fomos até o fim. Antes da etapa de edição, fizemos uma escuta coletiva e dialogamos sobre o material gravado. Eu percebi que a sonoridade captada agradara a todos, mas, especialmente, ao técnico de áudio Cris Lengruber, que comentou: “Cara, aqui dentro da sala a gente jamais teria conseguido um som vigoroso como esse que foi gravado lá fora!”.

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Créditos: fotografia de Guga Soares, gravação do 2do CD na Fábrica Estúdios. Recife, ano 2015. Acervo Leão Coroado.

Outro anseio dos batuqueiros do Leão era não deixar o baque acelerar, o que costuma ocorrer quando se dispara a ordem: “Gravando!”. Há gravações feitas em décadas passadas nas quais o baque do Leão aparece muito rápido, o que aparentemente contradiz a busca deliberada do baque lento e vigoroso que o Leão Coroado mantém. Acontece que o Leão vivencia uma toada que diz: “O Mestre Luiz de França foi o nosso professor / A tocar o baque virado foi ele que nos ensinou”. Essa toada assinada pelo Mestre Afonso tem fundamento. Em algumas entrevistas realizadas pelo saudoso pesquisador Roberto Benjamim com Luiz de França, este mestre vociferou repetidas e vigorosas queixas, como: “O baque tá muito apressado. Eu já disse que eu não quero… apressado eu não quero” […] “Eu quero mais compassado o ritmo […]”; “A toada pede carma. Carreira, não. Repare o modo da toada”. Segundo o Mestre Afonso, o baque lento ganha mais força. Valendo-me das anotações de andamentos das toadas que registrei nos ensaios e nas apresentações, durante a gravação eu tentei seguir os imperativos desse baque forte que cria as condições para que o porta-estandarte cumpra a sua obrigação, desse baque que “o povo gosta de ver”, que “as moças” olham da janela e, maravilhadas, chamam as outras para ver”. Por isso mesmo, Afonso Aguiar reitera: “Olê, olá, negrada olha a linha” […]. E eu também faço parte dessa negrada e continuo aprendendo com o Leão. Gratidão!

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Créditos: Diego Di Niglio, gravação na Fábrica Estudos, outubro 2015. Acervo Leão Coroado.

Faixas do CD Maracatu Leão Coroado 154 anos de história cultura e religião:

Faixa 7 Leão Coroado quando sai (3:30) BRDE71600120

Tradicional dos maracatus

Faixa 10 Negrada, olha a linha (2:56) BRDE71600123

Tradicional dos maracatus

 

Créditos do CD do leão coroado

In memoriam Binbinho

Produzido por Maracatu Carnavalesco Leão Coroado sob coordenação de Afonso Gomes de Aguiar Filho

Direção e Produção Musical Climério de Oliveira

Produção executiva Lía Miceli López Lecube e Diego Di Niglio

Gravado na Fábrica Estúdios em outubro 2015

Mixado por Fábrica Estúdios

Masterizado por Fábrica Estúdios

Texto de apresentação Climério de Oliveira

Integrantes do Maracatu Leão Coroado

Voz principal Mestre Afonso Gomes de Aguiar Filho.

Vozes femininas Maria de Jesus, Manuela, Cintia e Karlla

Músicos

Apito Mestre Afonso Gomes de Aguiar Filho

Agogô Lucio

Mineiro Erivaldo

Caixas Tony Boy e Afonso Henrique

Alfaias marcação Carlos, Wilton, Josinaldo Pereira da Silva Junior “Preto”

Alfaias meião Allan, Juliana

Alfaias repique Samuel, Vitor, Carlos “Juninho”, Tiago, Bruno

Alfaias virada Tiago e Vitor

Agradecimentos: Ao Orixá Xangô, Mestre Luiz de França, a Comissão do Folclore de Pernambuco, a Zé Fernando, a nossa equipe de produção do CD: Climério De Oliveira, Diego Di Niglio, Mateus Sá, Guga Soares, Lía Miceli López Lecube, a Dona Janete Hora de Aguiar, e a toda a grande família do Maracatu Leão Coroado: Wallace, César, Kawã, Cecília, Irio, José Edinaldo, Karen, Rigoberto, Manuel, Iasmin.

 

Incentivo: Funcultura Governo do Estado de Pernambuco

Apoio: ICEI Brasil

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Créditos: Diego Di Niglio, festa de aniversário dos 150 anos do Leão Coroado, Águas Compridas, Olinda, ano 2013.